24/11/2023
“Se o Estado não define regras, definimos nós”: empresas de lobbying preparam “auto-regulamentação” em 2024"
A Associação Portuguesa das Empresas de Comunicação vai criar as suas próprias regras se a regulação do lobbying não for uma prioridade do Parlamento no início da próxima legislatura. Todos os partidos têm “abertura” para ouvir as empresas – mas “a fronteira é que é tramada”
Caso a Assembleia da República não avance para a regulamentação do lobbying no início da próxima legislatura, as empresas de comunicação em Portugal que representam interesses privados junto dos decisores públicos vão criar instrumentos de “auto-regulamentação” para o sector. A garantia foi dada ao Expresso por Domingas Carvalhosa, presidente da Associação Portuguesa das Empresas de Comunicação (APECOM), que representa quase 30 companhias e cerca de 80% do mercado nacional.
“Estamos a trabalhar num manual de boas práticas que vamos implementar em todas as empresas [da associação]. Se o Estado não define as regras, definimos nós”, afirma a responsável, instando o Parlamento a regulamentar o lobbying já em 2024. “Gostávamos que a AR se antecipasse, mas não vamos esperar muito mais tempo. Avançaremos no próximo ano.”
O tema volta a estar na agenda na sequência da Operação Influencer, que levou à queda do Governo. Diogo Lacerda Machado, amigo de António Costa, é suspeito de ter influenciado decisões estatais a favor da empresa que tem o projeto da central de dados em Sines (Smart Campus). Tal como o ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro Está indiciado por tráfico de influências, tal como o ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária.
Neste momento, só dois partidos com assento parlamentar são contra a regulação do lobbying: PCP e Bloco de Esquerda. Esta quarta-feira, o deputado socialista Pedro Delgado Alves disse ao “Público” que a aprovação do lobby “já tarda” e será tentada na próxima legislatura “com toda a probabilidade” – uma posição semelhante à do PAN, que lembrou a “importância” do assunto à luz da recente crise política. Luís Montenegro garantiu há dias que o PSD também vai voltar ao tema na campanha eleitoral, assim como a Iniciativa Liberal e o Livre.
O Parlamento chegou a aprovar um diploma em 2019, mas foi vetado pelo Presidente da República devido a “três lacunas essenciais”: não se aplicava ao Palácio de Belém, não obrigava os lobistas a declararem os vencimentos, nem previa o registos de todos os profissionais em contacto com o poder político, “mas apenas dos principais”. Os partidos tentaram outra vez 2021, quando PS e PAN trabalharam num texto conjunto cuja votação foi adiada à última da hora; e no ano passado, quando PAN e Chega entregaram diplomas cuja discussão nunca chegou a ser agendada.
Há pelo menos 29 países a nível mundial com algum tipo de regulação do lobbying, mostra um relatório da Reuters publicado no início deste mês: a esmagadora maioria são países europeus, mas este é um “fenómeno global” que já chegou à Ásia (Taiwan) ou à América do Sul (Peru). Em Portugal, a conotação das palavras pesa e os profissionais do sector usam vários expressões a contragosto. “Não gosto da palavra ‘influenciar”, desabafa Rita Serrabulho, ex-assessora do ministério de Economia no Governo de Passos Coelho e diretora da Political Intelligence, uma empresa de ‘public affairs’ que chegou a Lisboa em 2018 e opera há vários anos em Bruxelas e Madrid.
‘Public affairs’ significa “assuntos públicos” numa tradução literal, mas não explica a profissão. “No fundo, o que nós fazemos é monitorizar a atividade política, perceber o que está a acontecer e antecipar decisões que possam impactar os nossos clientes”, explica. Diogo Belford, que foi adjunto de Paulo Portas no CDS-PP e no governo, é responsável por esta área da Cunha Vaz & Associados, uma das principais consultoras de comunicação no país. E corrobora esta posição: "Os representantes de interesses económicos legítimos têm de poder dialogar com os decisores políticos.”
Serrabulho diz que cerca de 90% dos seus clientes são multinacionais de áreas como a energia, tecnologia, aviação, imobiliário e retalho. Os contactos são sempre feitos através dos canais oficiais: enviando um email para um grupo parlamentar a pedir uma audiência sobre determinado tema, por exemplo. “O que podes fazer depois é ligar ao deputado em questão e dar mais contexto de forma informal”, explica uma fonte. “Há vezes em que acompanhamos os clientes nas reuniões, outras eles vão sozinhos, outras somos nós em representação deles."
Não há regras definidas, o modus operandi varia, “a ausência de uma pegada legislativa só potencia as atividades ilícitas”, completa Serrabulho. Outro lobista corrobora esta posição: “Sem regulação ficas numa terra de ninguém, com muitas áreas cinzentas, e isso potencia abusos por parte das empresas e do poder político”. Registar o nome e o motivo da reunião à chegada seria um método mais simples e “transparente”, garante.
“Se o Estado não define regras, definimos nós”: empresas de lobbying preparam “auto-regulamentação” em 2024
UM ADVOGADO NA SALA?
“Os legisladores não sabem tudo, nem têm obrigação de saber”, afirma um lobista que trabalhou em gabinetes parlamentares e ministeriais.
Recentemente, umas linhas pouco claras num diploma ambiental que o Governo transpôs a partir de uma diretiva europeia poderiam ter tido impacto num outro sector vital do Estado – se um grupo de lobistas não tivesse ajudado a fazer “pequenas correções”. Pouco tempo depois, pelo menos duas medidas temporárias para responder à crise do custo de vida foram alargadas pelo Governo: outra empresa a fazer ‘public affairs’, outros clientes.
“Somos recebidos por todos os partidos”, garante Domingas Carvalhosa, e por isso critica a posição de BE e PCP: acusam os privados de quererem “institucionalizar o tráfico de influências” para criar “um novo modelo de negócio”. Mas esse negócio já existe, diz a responsável da APECOM. “No tráfico de influências não se sabe quem está a representar quem. É tudo feito às escuras. No lobbying está tudo registado, e quem quiser vai lá ver.”
Todos os partidos “têm bastante abertura” para estes contactos, dizem todas as fontes ouvidas pelo Expresso – sobretudo os pequenos, em parte devido a “falta de capacidade legislativa própria”, aponta um ex-lobista, descartando o Chega: “As empresas não têm tanto interesse em reunir com a extrema-direita por razões reputacionais. E também porque as propostas do Chega dificilmente são aprovadas”, nota esta fonte, que trabalhou durante esta legislatura.
Fora da AR, a teoria mais forte para o atual bloqueio é esta: os advogados teriam de revelar os seus clientes, mas têm dever de “segredo profissional”. Um responsável de um dos maiores escritórios de advogados do país é taxativo: “Os advogados não podem fazer lobby devido à natureza da profissão.”
Consultores de ‘public affairs’ não têm as mesmas obrigações. “Quando um advogado vai ao Parlamento falar com os decisores políticos sobre os interesses do seu cliente, isso não é advocacia. É lobbying”, afirma Domingas Carvalhosa, pedindo uma posição pública à Bastonária sobre a questão.
Há tons de cinzento. “Uma coisa é a advocacia pura e dura, outra é a representação de interesses. A fronteira é que é tramada. Há situações em que a argumentação [para tentar influenciar uma decisão] toca no direito, e essas situações nem sempre são óbvias”, opina um advogado que já exerceu funções governativas. E um lobista profissional acrescenta: “Quando o cliente tem um advogado na sala sente-se sempre mais seguro.”
Apesar de ter regras mais avançadas, a União Europeia passa por debate idêntico. Há 80 grandes escritórios em Bruxelas, mas só 17 estão registadas no mecanismo comum de transparência.
Acima de tudo, a crise política mostra a necessidade urgente de regulamentar a profissão, diz Carvalhosa. Quando a AR tomar posse, quer regras “simples, gratuitas e preferencialmente online, para chegarem ao maior número de pessoas”. Se este fosse o cenário atual, talvez o Governo não tivesse caído com tanta violência, aponta outra lobista. A empresa [Smart Campus] sentou-se com o Governo. Se o registo [das reuniões] fosse obrigatório, talvez toda a situação tivesse sido minimizada. Não havendo regras, as consequências são o que são.”
Por Tiago Soares
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